depois do bilhete

Beatriz Helena
2 min readApr 21, 2023

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imagino-te numa redoma intocável pelo sofrimento. ainda tem amor. um amor puído, um tecido bonito esquecido num baú. beleza bruta na poeira.

foi assim. eu, o teu silêncio apedrejante e os nossos dois quilômetros infinitos de distância perambulávamos emaranhados. até quem me via pela primeira vez os via também. uma miserável na fila do pão, cadela na porta do cemitério.

a minha fertilidade secou, era árido e frio o teu silêncio. todos os dias eu amanhecia rio suave e quente para te banhar, de noite, banhava-me dos meus olhos. muita água. já o teu amor era gota e evaporou. era pedrinha.
e a lua levava o meu sangue, levava o meu sangue…

escrevia o teu nome no bilhete. escrevia o teu nome na folha de louro. no bilhete, na folha de louro. acendi vela. chamei ogum xoroquê. sabia o que queria, não o que queria querer.

encontrava papéis e folhas amassados com o teu nome desbotando nos sapatos e nos bolsos. todo final de semana eu esperava nas ruas, nas esquinas, na areia, nos bares, no telefone.

os cabelos ganharam quinze centímetros e os vazamentos continuavam. era o meu sebastianismo íntimo. até o fim da espera, cada dia mais congelada, o amor era louco de pedra, louco de passado, louco de desandar a vida.

a minha espera terminou no asfalto, contra as nossas vontades, de óculos escuros e bermuda. ao acaso, vi-te em tamanho real, ignorante da minha vida. desejou-me o corpo, num momento único, entre tantos outros de sumiço, como fosse o primeiro.

foi neste dia de sol alucinógeno que a realidade sublimou o amor. desapedrejei-me.

o amor afogou-se na raiva, mudou de cor, mas não morreu. oxidou. é um tecido de beleza notável fora de moda. a perfeita anacronia.

a poesia falha, a memória falha. desejo-te uma redoma de alegria. já não há bilhete ou folha. que pena. a dosimetria do adeus. depois do bilhete, o resumo de uma carta: cinco de espadas.

(Texto de continuação do conto Bilhete )

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