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Bilhete

Beatriz Helena
2 min readJan 22, 2022

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Era só mais um papel rasgado, pedaço do caderno de contas da mercearia. Veio junto com o troco. Sua irrelevância era sob medida para o ritual: tornar desimportante por meio da desimportância. Um pedaço de linhas que não eram de trem, não eram de raciocínio, não eram diretas, nem eram de costura. Linhas de fuga, talvez. Um papel escolhido num dia cinza para esconder um abandono triste (e olha que sequer existe abandono feliz). A tarde cinza acompanhava o rito de calar. O silêncio da ré confessa já não poderia se esconder. Abandonou-se como jamais e lhe restou apenas o vento gelado no rosto e o privilégio de esconder o papel no bolso.

Àquela altura já não tinha palavra revogável, não tinha o desdito nem o não dito. E tinha um pedaço de papel minúsculo que aplacaria o vendaval. O café perdia o calor, sem graça nenhuma. O biscoito de maisena pálido-mordido-triste acompanhava resignado a cena. Uma vez escrito o garrancho, as gotinhas no vidro tornaram-se forçosamente interessantes, um microuniverso dentro da galáxia da vergonha. O pedaço de papel havia de arrancar aquela coisa e levá-la consigo para dentro do bolso. Um expurgo, um exorcismo canalizado pela caneta esferográfica. E do bolso ao esquecimento. Porque imagina se aquilo sai do bolso do jeito que saiu pela boca. Falhas em série.

O arrependimento caia melhor sobre o ter falado ou sobre o ter vivido? O pedaço de papel condensa as experiências numa letra torta. Se não tivesse vivido não teria falado, se não tivesse vivido teria morrido. A caneta não falhou. A poesia começa a falhar. A memória, não. A poesia cinza do fim de sábado poderia ser colorida se…A memória, não…

Não lembrar de estar entre ele e o portão às duas da manhã morrendo de rir. Não lembrar, não lembrar, não lembrar. O papel que o carregue. Uma gota aglomera na outra. De um lado a praça, de outro, a cerveja. Gotas em formato de pata de cachorro. Não havia nada além da mão na mão, os cabelos meio embaralhados, os óculos arredondados. Um risco no vidro. Uma promessa de reencontro, um olhar limítrofe entre doce e canalha. Chuva, gotas, vidro, papel. O papel! Amassado, amassado, pisado, surrado, no bolso da calça. Calça no chão.

Tinha o papel, mas também tinha a coisa estampada na testa, costurada na pele, gravada na costela e saindo pelos poros. Não existe fuga de si. “Aonde quer que eu vá, levo você…”. Existe a música. Não há poesia na tinta sobre a celulose. Tampouco há metáforas para assumir que foram expressamente oferecidas as páginas em branco do diário a quem preferiu um pedaço de papel prestes a ser mastigado pela máquina de lavar. Todo sábado é dia de rito.

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